Um sorriso valerá mais que muitas palavras. Quando é sincero revela contentamento ou alegria. Quando se torna um sorriso de papel, frágil, falso, fingido, revela a instabilidade emocional ou social da pessoa que sorri. Whisky, um filme uruguaio de 2004, que (só) estreou esta semana em Portugal, é uma jóia cinematográfica que joga com pequenos pormenores, como por exemplo esse sorriso de papel, que nos presenteia, em tom alegórico, com uma fantástica história humana da vida quotidiana e das suas repetidas particularidades.
Em Whisky, acompanhamos a vida monótona de Marta Acuña, interpretada por Mirella Pascual, e do seu patrão Jacobo Koller, encarnado por André Pazos. Marta passa a maioria das suas horas a trabalhar na fábrica de meias de Jacobo, compilando todos os seus movimentos num rigoroso ritual sistemático que faz com que os seus dias sejam todos iguais. Jacobo segue o exemplo de Marta. Toma o mesmo pequeno-almoço no mesmo café exactamente às mesmas horas da manhã. Abre a sua fábrica, gere a contabilidade, sempre num esquema quase mecânico, como as máquinas de fazer meias da sua fábrica.
Este carácter da monotonia quotidiana é reforçado, de forma minimamente exemplar, pelos realizadoresJuan Pablo Rebella e Pablo Stoll. A narrativa é montada nesse mesmo esquema de repetições quotidianas, fomentando a ideia da banalidade dos dias de Marta e Jacobo. É aqui que reside grande parte da magia desta película. Na forma tão natural e artística que se expõe visualmente e temporalmente este quotidiano “entediante” de Marta e Jacobo.
O ponto de quebra, onde os sorrisos de papel se dão literalmente (mas que no fundo apenas se tornam cada vez mais frágeis), dá-se quando Jacobo propõe a Marta que esta passe por sua esposa durante a visita do seu irmão, Herman Koller, interpretado por Jorge Bolani. É durante esta farsa que a subtileza desta obra cinematográfica mostra o seu valor. Este sorriso fingido, esta farsa conjugal, que deveria ser apenas isso mesmo, representa, contudo, a vida que Jacobo e principalmente Marta desejavam ter. É a vida propriamente dita. Aquela que procura outras emoções, mesmo que sejam simples e não muito complicadas. Aquela vida que procura coisas novas dentro dos outros, quando já só vemos o mesmo dentro de nós. É vida que sai do sistema, nem que seja só um pouco. A sua vida real é que é a verdadeira farsa. A farsa é a sua verdadeira vida. Ou pelo menos a sua utopia.
Apesar de todas estas qualidades artísticas, Whisky não é um filme para todas as audiências. Esta preciosidade uruguaia poderá ser desconsiderada por muitos. Alguns acharão entediante, sem sentido, com pouca acção. Outros dirão que é um filme desprovido de qualquer valor ou conteúdo. A verdade é queWhisky não é um filme para todos. Está cheio de deliciosas particularidades e pormenores artísticos que demonstram, por si só, a sua qualidade enquanto obra de arte. Whisky é filme para ver, observar eentranhar. Não é um filme de sensações imediatas, mas sim de pequenos (grandes) prazeres.
Uma película absolutamente recomendável, que vem enaltecer, mais uma vez, o cinema sul americano. Entristece apenas pela falta de apoio e promoção que este cinema tem no mundo e principalmente em Portugal.
(Crítica também publicada em http://www.espalha-factos.com/2010/07/whisky-o-sorriso-de-papel/)