Considerações e opinações sobre a sétima arte.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Do Baú: "O Destino" de Youssef Chahine

Venho-vos propor um novo formato. Trata-te de uma rubrica semanal, onde vos irei propor retirar do baú um clássico do cinema. Em breves palavras tentarei-vos convencer a, pelo menos, ir ver o trailler. Se trabalhar bem,  poderei até mesmo levar-vos a visualizar o filme. Em todo o caso, aqui fica a minha primeira tentativa.

"O Destino" de Youssef Chahine
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O filme que vos trago foi realizado em 1997, por Youssef Chahine, o génio do cinema egício que faleceu no passado ano de 2008, famoso pela sua obra “O emigrante”, de 1994, que causou imenso sucesso mas também imensa polémica no egípto, envolvendo até acções judiciais e sociais.


       O Destino, de título original Al-massir, transporta-nos para a Andaluzia do séc. XII, controlada, na época, pelos muçulmanosAcompanhamos a história do famoso filósofo Averrões e da sua luta para manter as suas ideias vivas através dos livros. Pela relação que o filósofo tem com o chefe máximo do território, O Caliph, e da forma como influencia os filhos deste último, Chahine procura retratar a tensão existente entre a religião e a liberdade do pensamento que fez faísca durante tantos anos e ainda faz nos dias de hoje.


        Como é habitual em Chahine, o enquadramento histórico que faz ao filme,  vem acompanhado de uma carga bastante simbólica. A história de Averrões serve de mote para promover as ideias e as livres interpretações, não só da religião, mas também do comportamento humano em geral. O Destino será uma espécie de aviso àqueles que, na cultura muçulmana de Chahine, bem como na nossa cultura ocidental, levam as palavras dos escritos sagrados à letra. Como fica expresso no filme, o homem nasceu com inteligencia suficiente para descodificar os significados sumbliminares das mensagens de Deus e da Natureza. Como diz averrões, “As ideias tem asas. Ninguém pode parar o seu vôo”.

·         Um óptimo filme para ver com olhos de ver e ficar a digerir durante vários dias. Um filme que faz reflectir sobre a condição humana, a liberdade e o pensamento.




sábado, 9 de outubro de 2010

Embargo: a experiência Saramaguiana aplicada ao cinema

A mutação de Embargo, de José Saramago, de conto literário para obra cinematográfica não poderia ter sido mais sublime. Digo isto completamente ciente do peso que poderão ter tais palavras. O trabalho de readaptação é perfeito em todos os pontos, brilhando ainda mais no que toca à artisticidade da narrativa que, apesar de simples, comporta uma carga moralista e emotiva bastante forte, utilizando sempre a ferramenta do sarcasmo.
Não sei bem se é a magnificência e a paradoxal simplicidade da narrativa criada por Saramago, ou se é a excelência da estética criada por António Ferreira, o realizador, que faz deste filme um (futuro) fenómeno do cinema português. Talvez tenha sido o misto entre a potencialidade literária do conto de Saramago com o êxtase criativo de António Ferreira que originou tal obra.
Mas sejamos mais empíricos. O que deve ser subtraído da narrativa originalmente apresentada peloNobel da literatura no seu livro de contos Objecto Quase, publicado em 1978? Em primeiro lugar, devemos reforçar a simplicidade de forma e conteúdo da história e a importância que isso tem. Um sujeito, Nuno, interpretado no filme por Filipe Costa, vive no desalento, mas simultânea esperança, de tentar dar um futuro melhor à sua família. Essa esperança resume-me na sua tentativa de fazer vender uma sua invenção: um digitalizador de pés. Mas a sua angústia descontrola-se quando este fica preso no seu carro, ficando impossibilitado de fazer vender o seu peixe. É esta premissa que, apesar de simples, comporta, nos pequenos pormenores, um potencial simbólico bastante forte. Aqui, devemos atender à crítica que está a ser feita à sobreposição da tecnologia nas nossas vidas e de como esta acabará por consumir-nos ao ponto de nos deixar imobilizados.
O segundo ponto que deve ser referido é a sua carga simbólica e moralista. Mas devemos primeiro ter a atenção  à mutação feita ao conto original de Saramago. No conto de Saramago, a angústia e o desespero do nosso “herói” são levados ao extremo, procurado explorar os perigos da modernização, que leva, no filme, a uma situação pré-anarquia, bem como os perigos da ganância. É explorado o lado mais negro desse desejo, mostrando, no seu desfecho final, o horror de um vida presa àquilo que criámos, a tecnologia, e de como acabamos por perder o controlo sobre essa mesma criação. Nesta adaptação cinematográfica, Tiago Sousa, o argumentista, adoça o desfecho mudando a carga emotiva que até então a audiência tinha experienciado. É alterada a desgraça para uma esperança no futuro e na própria vida relacional, romanceando um pouco a moral da história. No fim, já não é negatividade da industrialização e do desastre social que esta pode causar que é apontada, mas sim a esperança que existe se nos despergarmos dessa negatividade. É dado privilégio às relações humanas, à família e aos pequenos pormenores vivenciais.
Finalmente, e ultrapassada a carga moralista, simbólica e emotiva do filme, falemos um pouco da estética desta película e o que traz de novo à nossa cultura cinematográfica.  A nível estético, o que encontramos em Embargo é uma realização bastante contemplativa. Desde à recorrência aos planos pormenor até ao jogo de lentas panorâmicas à volta do carro de Nuno, tudo vale para puxar a audiência para dentro do filme de forma bastante profunda. Neste caso, a magnífica banda sonora faz um papel fulcral. O envolvimento de cada plano em cada cena e cada cena em cada sequência, adquire a sua perfeição principalmente pela magistral banda sonora que vai muito de encontro ao espírito do filme. É também de salientar, a mestria em termos de fotografia, usando um padrão de tons sepia que vão de encontro à contextualização histórica da época (anos 70/80). No conjunto, cada imagem do filme que recebemos na retina é uma contemplação pura de cada acção, o que acrescenta um toque pessoal na maneira de fazer cinema. Existe aqui, uma corrente que se tenta insurgir, algo novo no panorama cinematográfico português.
Depois de toda esta desconstrução, Embargo resume-se bem no seu teor humorístico, meio sarcástico, com que acaba por moralizar e até fazer pensar. O humor negro por excelência surge encrostado em quase todo filme, nos diálogos, nas acções e na própria narrativa como um todo. É esse humor que faz corroborar a película Embargo com o estilo literário de Saramago. A crítica satírica, o sarcasmo como forma de ataque. É esse o ”sangue” que corre em todas, ou quase todas, as cenas do filme, de forma directa ou indirecta.
António Ferreira precisou de 8 anos para criar uma nova obra, depois de Esquece Tudo o que te Disse. Pessoalmente, dou graças a esses 8 anos de espera, pois é claro que a maturação e o encontro com o artista interior, que vemos em Embargo e pouco ou nada vemos em Esquece Tudo o que te Disse, necessitaram desse período de crescimento.
Um filme que me apaixonou do início ao fim e que me deixou até desleixado nas palavras para o classificar.
Para quem gosta de cinema português. Para quem gosta de cinema. Para quem quem gosta de Arte.

Lucky Luke: O pistoleiro belga


Nasceu, em 1941, na Bégica, uma estrela de B.D. europeu conhecida pela sua extrema destreza com a pistola e pela sua exagerada, mas invejável, sorte. Lucky Luke veio ao mundo com o sucesso nas veias e no universo dos Comics fez as delícias dos amantes destes livrinhos. Porém, tardou a envergar na carreira cinematográfica. Só em 1971, com o filme de animação Daisy Town, de Renné Goscini, pudemos ver pela primeira vez Lucky Luke no écran. E apesar de ser a 3º B.D. com mais sucesso na Europa, o percurso de Lucky Luke na área do cinema e da televisão, entre a animação e a comédia/acção, não chegou a fazer jus ao estrelato até então conseguido na B.D.
Chegamos a 2009, ano da estréia mundial deste novo filme Lukcy Luke, com um antecedente fílmico da saga, Les Dalton, de 2004, realizado por Philippe Haïm, muito pouco aclamado pela crítica. Assim, Lucky Luke é, desde a partida, um filme que não gera muita expectativa, apesar da figura “mítica” que o suporta. O que vemos neste novo filme do místico pistoleiro não difere muito do vimos em Les Dalton. Uma abordagem cómica bastante arriscada que passa algumas vezes a fronteira do ridículo, revelando pouca consistência no seu humor.

Apesar disso, a abordagem de Lucky Luke não deixa de ser um tanto quanto peculiar. A própria caracterização, o vestuário, os cenários e a imagem (com a utilização de cores fortes) ajudam a criar um western europeu que apenas podemos encontrar no livro de quadradinhos. O seu humor, muitas vezes exagerado e desenquadrado, vem descredibilizar essa imagem única.

A narrativa explora um pouco a história de Lucky Luke, incluindo as suas origens trágicas e a razão para este ser o cowboy que jurou nunca matar ninguém. Esta linha mais dramática vai ser retomada no desfeche do filme, jogando com os laços afectivos de Lucky Luke e com os sentimentos que este tem perante a vida. A acompanhar toda esta tragédia, surgem várias personagens famosas do velho Oeste que adoçam esta comédia “semi” dramática, tais como Jesse James, interpretado por Melvil Pupaud, Calamity Jane, encarnada por Sylvie Testud, e Billy The Kid, intrepetado por Michaël Youn.

Porém, é este misto entre a emotividade e o dramatismo da história de Lucky Luke e todo o teor humorístico do filme que gera um certo sentimento de instabilidade e incoerência. Apenas a fabulosa interpretação de Jean Dujardin, que dá vida a Lucky Luke, nos faz sentir alguma empatia com o filme. Em Lucky Luke acontece algo positivo que falhou em Les Dalton. A aura do Lucky Luke da B.D. é finalmente restabelecia no cinema. Ao contrário de Til Schweiger, que assume o papel do pistoleiro mais rápido que a própria sombra em Les Dalton, Jean Dujardin assegura bastante bem a personagem de Lucky Luke, gerindo, de forma magnificente, o seu teor cómico e a sua componente heróica e dramática.

Finalizando, podemos dizer que Lucky Luke não surpreende, nem nos faz ter mais esperança num prisma cinematográfico mais favorável para o pistoleiro mais rápido do Oeste. Não podemos, contudo, descartar o desempenhado do elenco, que deu alma a cada uma das personagens, apesar de algumas se desleixarem no humor lamacento acima descrito.

Um filme apenas para ver o herói de banda desenhada encarnado no grande écran e nada mais.