Considerações e opinações sobre a sétima arte.

sábado, 17 de abril de 2010

Dorian Gray: Uma efémera imortalidade

A adaptação cinematográfica de qualquer obra literária é uma tarefa delicada. Acrescentando o facto de essa mesma obra ser um dos grandes clássicos do século XIX e uma obra que representou e representa o próprio decadentismo de uma geração, como é o livro O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, a tarefa torna-se ainda mais complexa. Já não é só com a incongruência, que se faz notar entre a escrita romanceada e a escrita cinematográfica, nomeadamente na construção das estruturas narrativas, com que se deve preocupar. Está em jogo uma imagem, um legado, uma representação literária, de grande dote, de uma única realidade. A readaptação ao cinema dessa mesma representação é uma missão (quase) impossível.
Dorian Gray, o novo filme de Oliver Parker, não consegue dar conta do recado, pelo menos a um nível suficientemente plausível para ser comparado com a obra de Wilde. Não que o filme cometa pecados mortais, antes pelo contrário, toda a sua envolvência cinematográfica, o que inclui uma óptima direcção artística e um agradável uso da técnica, recria com bastante decência o ambiente vitoriano. Por outro lado, os desempenhos de  Ben Barnes, como Dorian Gray, e de Colin Firth, como Lord Henry Wotton, são também bastante respeitáveis.
Mas algo teima em faltar a esta película que, à primeira vista, é uma verdadeira beldade aos olhos de quem a vê. Se não levasse com ela o carimbo de readaptação de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, talvez essa carência não fosse tão sentida. A verdade é que esse carimbo é inevitável, como também são as comparações instantâneas que fazemos entre o filme o livro, a cada cena que visualizamos. E essa ausência do verdadeiro esplendor da história deDorian Gray não reside naqueles pequenos erros, ou para ser mais delicado, naqueles pequenos deslizes que o realizador e o argumentista cometeram ao construir a narrativa do filme e a sua própria montagem. Falta verdadeiramente a essência da obra literária.
Em Dorian Gray, sentimos, claramente, a necessidade brusca que o realizador teve em apressar o fluxo narrativo, encurtando vários momentos da acção ao mínimo. Num ritmo quase alucinante e muitas vezes prejudicial, somos projectados para a acção do livro, sem que contudo se sinta uma verdadeira ligação. Talvez seja por causa dessa necessidade absurda, usual em Hollywood, de conter o filme dentro dos 120 minutos de duração.
Contudo não é esta a grande incompatibilidade do filme Dorian Gray com a majestosa obra literária. A busca do prazer imediato e a necessidade da eterna juventude estão entranhadas em toda a narrativa do romance.  Aliás, são a grande temática da obra de Oscar Wilde, que tenta, dessa forma, retratar, em Dorian Gray, a decadência de uma classe, de uma geração, que procura  viver todos os prazeres, que procura a própria imortalidade.
Esta realidade é bastante evidente no livro. Não tanto no filme. Apesar da mínima fidelidade que esta película tem em relação à acção do livro, nem sempre o enredo é suficiente para alcançar o objectivo da obra. A forma como se conta a história, neste caso específico, faz toda a diferença. A incongruência entre a obra literária e a obra cinematográfica reside aí. Em Dorian Gray, a tal busca pela imortalidade fica a meio caminho, em termos representativos. É, no fundo, uma efémera imortalidade.
Dorian Gray é um filme que, no seu teor comercial (evidente principalmente pela necessidade do realizador em encurtar toda a narrativa, para o tornar mais apetecível ao público em geral), se estabelece como uma película de relativo interesse. E apesar das dificuldades que tem em acompanhar o original literário, não deixa de ser um harmonioso drama alegórico que se sustenta num delicioso argumento.




domingo, 4 de abril de 2010

The Imaginarium of Dr. Parnassus: O delírio surrealista


Terry Gilliam foi sempre um realizador peculiar. Se recordarmos filmes como o clássico BrazilFear and Loathing in Las Vegas (Delírio em Las Vegas) ou mesmo Tideland, compreendemos que o cinema de Gilliam não segue as regras normais. Pelo menos no que toca à estrutura narrativa de um filme. E mais ainda no que toca à exploração da sua própria imaginação cinematográfica. Em The imaginarium of Dr. Parnassus (O Homem que queria enganar o Diabo, na tradução portuguesa) são bastante notórios estes dois factores. Quando se entra na sala de cinema para ver o novo filme de Terry Gilliam, sai-se com a certeza que é um filme deTerry Gilliam. E é essa a principal qualidade deste filme.
A narrativa funciona com base numa história de teor minimamente fantástico. Um homem místico, ancestral, com poderes mágicos. Uma série de apostas com o Diabo em pessoa. Um espetáculo ambulante minimamente bizarro. E um jogo entre dois mundos: O real e o imaginário.  Tudo envolto em personagens bastante sólidas e muito bem interpretadas. Mas, como é compreensível, o desenho narrativo é feito em linhas minimamente tortas. Em primeiro lugar, porque se trata de um filme com uma essência surrealista. Em segundo lugar, porque as próprias circunstâncias de produção o requereram (falo da morte de Heath Ledger que interpretou o papel de Tony, umas das personagens, e que morreu ainda sem concluir por completo as filmagens).
Mas este desenho fílmico, no seu todo ou em partes separadas, é um desenho genuinamente artístico. As linhas da acção fazem com que as personagens sejam lançadas num jogo surrealista e imaginário, muito bem tecido por Gilliam, que nos leva a entrar num outro domínio da arte. Um domínio onde as próprias regras lógicas da narração e do próprio cinema são colocadas em segundo plano. Onde o que vale não é a credibilidade narrativa ou a continuidade estrutural, mas sim a relação entre as construções fortes das personagens e as cenas de carácter transcendente e puramente artístico.
Claro que tudo isto é conseguido através de um risco enorme, por parte do próprio realizador. Primeiro, porque, deixando uma linha narrativa frágil, é comum tornar o filme, como um todo, num conjunto solto de cenas. Segundo, porque sem personagens fortes e complexas que segurem o enredo, tudo poderia parecer ridículo e insípido. Aliás, o risco foi tanto que devemos admitir a existência de alguns erros ou lapsos, ou melhor, fluxos criativos levados ao extremo, onde nos perdemos um pouco da narrativa e das premissas iniciais.
A sua qualidade técnica é também um ponto a louvar. Não só nos seus efeitos especiais, mas principalmente pelos fantásticos cenários recriados. Todo o quadro estético, das cenas dentro do imaginarium, torna-se em verdadeiros quadros surrealistas que exploram a iconologia de toda a narrativa em inteligentes construções imagéticas.
Posso apenas concluir reforçando a minha ideia inicial. Terry Gilliam é um realizador único, com o um carácter cinematográfico bastante original e cheio de criatividade. The imaginarium of Dr. Parnassus é prova disso. E é também a prova de que não é necessário aderir à febre do 3D para criar, esteticamente falando, algo belo.
Um filme para ver de mente e imaginação aberta.



Um Sonho Possível: O Sentimentalismo Irreal



Um Sonho Possível (The Blind Side), escrito e realizado por John Lee Hancock, é um filme completamente sobrevalorizado. As várias nomeações e prémios que obteve na área do cinema, nomeadamente na gala dos Oscars, não justificam, na minha opinião, os 129 minutos passados na sala de cinema. Um filme cheio de clichés emocionais, banalidade narrativa e muito sentimentalismo gratuito e irreal, sem que, contudo, contenha verdadeira intensidade. Um apelo unicamente comercial. Parte de um molde americanizado e mecanizado, com pouca criatividade, fazendo-se depender do desempenho dos protagonistas para causar o impacto desejado nos nossos corações.
É-nos apresentada, inicialmente, a história verídica da adolescência atribulada do jogador de futebol americano Michael Oher, interpretado por Quinton Aaron, e da forma como foi, consequentemente, resgatado da pobreza por Leigh Anne Tuohy, interpretada por Sandra Bullock. Partindo destas premissas, baseadas em factos reais, o argumento vai, obviamente, restringir-se, tendo em conta os limites naturais da história recontada. Por tanto, ao argumentista não lhe são possibilitadas grandes criações narrativas. A história não poderá voar para além do que foi realmente, salvo alguns pormenores que, alterados, poderão torna-se mais comerciais. Mas seria tão complicado assim, explorar uma visão mais pessoal e mais expressiva desta história (que, apesar de tecer algumas linhas de glória e heroísmo contem traços banais com que já estamos habituados e até enjoados)? Tal interpretação cinematográfica poderia fugir ao caminho fácil da banalidade e do sentimentalismo forçado.
Porém, não foi isso que aconteceu. John Lee Hancock limitou-se a colocar “na chapa” cena por cena, tal e qual como está descrito no livro de Michael Lewis. Assim, apenas trabalhou as personagens de forma a que, enquadrando-as nas premissas iniciais, facilmente trouxessem o sentimentalismo ao de cima. Num outro contexto, talvez tivesse funcionado. Num contexto em que a realidade histórica da narrativa pudesse ser tão surpreendente que falasse por si. Ou no caso da construção das personagens ser tão eficaz que nos faria esquecer tudo o resto. Num caso que não é, de certo, o de Um Sonho Possível. A narrativa é construída de forma demasiado irreal, explorando relações que, por sua vez, são elas mesmas irreais (ou por culpa da má construção do argumento e das personagens ou mesmo por culpa do desempenho dos actores). Passamos o filme inteiro a ver como Michael entra na vida de Leigh simplesmente porque sim, ou mesmo só porque Leigh acordou um dia e resolveu sentimentalizar-se. O que quero focar é o desprendimento à razão lógica que esta narrativa tem. Não estou a falar dos factos reais, mas sim da forma tão crua e artificial como os acontecimentos foram escarrapachados no ecrã, sem se pensar em arranjar um núcleo seguro que pudesse dar mais credibilidade ao fluxo narrativo.
Falemos agora do mais falado: os desempenhos dos protagonistas. De Quinton Aaron pouco tenho a dizer. Nem aquece nem arrefece. Encarna Michael de uma forma minimamente convincente, mas sem ultrapassar os limites do razoável. Um desempenho “normal”. O caos surge, sim, do outro lado do protagonismo. Sandra Bullock vai interpretar Leigh de forma tão peculiar que lhe valeu um Oscar pela academia. (Mas que Oscar tão mal dado!) A interpretação de Sandra Bullock, à semelhança de toda a sua carreira, não passa de uma mera tentativa de brilhantismo. De um breve sopro de representação que não aspira nem um pouco à magnificência que é necessária para merecer um Oscar. E além do mais, é clara, tanto na sua interpretação como na construção da personagem de Leigh, a queda para o sentimentalismo gratuito, que se baseia numa sequência de caretas pouco naturais e, por vezes, pouco contextualizadas. Uma serie de caras de séria, umas outras de emocionada e pouco mais. O guião pouco enriquecido também não permite a Bullock atingir algo de respeitável no que toca aos diálogos. Por todas estas razões, o seu desempenho não ultrapassa o banal.
Um Sonho Possível não é um mau filme, apesar de todo o “mal dizer” que tenho aqui transcrito. Contudo sinto a necessidade de demonstrar o quanto sobrevalorizado foi e continua a ser. Se analisarmos bem, com olhos de ver, sem nenhum sentimentalismo ou parcialidade, chegaremos à conclusão que, no fundo, não passa de mais um pré-filme, um fast-food do cinema, que serve apenas para, de forma fácil e barata, chegar aos corações (e às carteiras) dos mais frágeis.