Whatever Works foi, para mim, uma lufada de ar fresco. Humor requintado, actuações soberbas e um estilo único que transforma qualquer simples história num marco cinematográfico. Tudo o que se espera de um filme de Woody Allen. Mas existe algo de particular nessa sua nova obra. Algo que Woody não tinha vindo a conseguir nos últimos trabalhos, talvez com excepção de Vicky Cristina Barcelona. Algo que o distingue dos outros cineastas. Whatever Works está repleto de um esplêndido teor de humor negro que, apostando na complexidade dos diálogos, faz rir o espectador de uma ponta a outra do filme.
Nesta nova película, Woody Allen recriou a sua personagem-padrão favorita, o cómico e excêntrico hipocondríaco. Todavia, e pela primeira vez, não foi o próprio que usufruiu da sua encarnação, sendo esse prazer concebido a Larry David. Larry David, nome sonante na área da televisão, tanto na escrita como na actuação, basta relembrar o clássico Seinfeld, onde foi dois primeiros argumentistas, e a série Curb your Enthusiasm, pela qual foi nomeado para o Globo de Ouro e para o Emmy múltiplas vezes, assume o papel de Boris, um génio de física quântica frustrado pelas incompatibilidades que tem com a vida. Esse seu fracasso social reflectiu-se no seu divórcio e na sua primeira tentativa de suicídio. Boris tem perspectivas muito afincadas sobre o sentido da vida. Para ele não existe nenhum. Tudo o que sonhamos, tudo o que projectamos e tudo o que fazemos é um conjunto de meros passos amorfos que caminham para um só caminho final: a morte. Assim, menospreza todos aqueles que ambicionam a grandeza, amores-perfeitos e finais felizes. E para isso não poupa na violência das palavras. Para ele, todos esses sonhadores não passam de vermes incultos. Mas a sua mesquinhice não fica por aqui. Boris é um hipocondríaco de alto gabarito que, para além de acreditar que sofre de todas as doenças, enerva-se com facilidade com mínimos pormenores. À noite, acorda com crises de ansiedade, inconsolado e incrédulo com a efemeridade da vida. Em Boris podemos rever todos aqueles traços que Allen adora colocar nas personagens que usualmente encarna. Boris é o cliché da indignação. É o grande chavão do snobismo. É a cara da ânsia e da frustração. Boris é o culminar do aperfeiçoamento de uma personagem, de uma personalidade, que Allen tem vindo a construir desde a idade primitiva da sua obra.
É assim, com esta personagem marcante, que Woody Allen nos vai jogar na cara um balde cheio de humor inteligente. Os temas e as questões da religião, da aculturação, da discriminação, são todos pontos legítimos neste grande plano humorístico de primeira classe. Contudo, não satisfeito, Allen cruza Boris com o seu oposto intelectual, como quem choca um átomo com um outro causando uma explosão nuclear. Melady, é uma ingénua jovem sulista, que fugiu da casa dos pais no Missisipi e refugiou-se em Nova York. Ao encontrar Boris, acidentalmente, vai-lhe pedir auxílio para conseguir sobreviver na cidade que nunca dorme. Melady é uma rapariga sonhadora que acredita no amor. As suas ideias não são muitas e a sua fé em Deus e nos costumes da família são grandes. É, para Boris, tudo o que odeia num ser humano. Mas é esse mesmo factor de oposição que faz crescer o interesse de Boris pela rapariga e gerar uma peculiar relação entre os dois. Posteriormente, para apimentar as coisas, os pais de Melady chegam à grande cidade em busca da filha, mas acabam por embarcar num verdadeiro barco do amor e da libertação.
O enredo de Whatever Works não é muito complexo. Aliás, dentro do paradigma Alleniano, podemos dizer que até um pouco banal. Mas quem precisa de floreados narrativos quando se tem personagens tão características, diálogos extravagantemente inteligentes e um humor negro que só os mestres são capazes de produzir? Whatever Works é uma representação única da visão de Allen acerca do amor, dos sonhos e da própria vida. É mais que uma história. É mais que uma narração. É uma maneira de contar algo. E como diria Chico Buarque, por vezes a forma como contamos uma história sobrepõem-se à história em si. A estrutura desta obra cinematográfica, mais do que contar-nos uma história, transmite-nos uma ideia, uma visão.
Perante este filme, encontramos uma parábola, uma fábula urbana que nos descreve o amor, não como algo premeditado, mas como um acaso, fruto da sorte dos acontecimentos. Basicamente um apelo ao aproveitamento da vida e do dia, visto que tudo pode dar certo e nada está destinado a acontecer.
(Esta crítica está publicada em www.espalha-factos.com com o nome de "Tudo pode dar certo: uma parábola urbana")
Francisco Noras