A mutação de Embargo, de José Saramago, de conto literário para obra cinematográfica não poderia ter sido mais sublime. Digo isto completamente ciente do peso que poderão ter tais palavras. O trabalho de readaptação é perfeito em todos os pontos, brilhando ainda mais no que toca à artisticidade da narrativa que, apesar de simples, comporta uma carga moralista e emotiva bastante forte, utilizando sempre a ferramenta do sarcasmo.
Não sei bem se é a magnificência e a paradoxal simplicidade da narrativa criada por Saramago, ou se é a excelência da estética criada por António Ferreira, o realizador, que faz deste filme um (futuro) fenómeno do cinema português. Talvez tenha sido o misto entre a potencialidade literária do conto de Saramago com o êxtase criativo de António Ferreira que originou tal obra.
Mas sejamos mais empíricos. O que deve ser subtraído da narrativa originalmente apresentada peloNobel da literatura no seu livro de contos Objecto Quase, publicado em 1978? Em primeiro lugar, devemos reforçar a simplicidade de forma e conteúdo da história e a importância que isso tem. Um sujeito, Nuno, interpretado no filme por Filipe Costa, vive no desalento, mas simultânea esperança, de tentar dar um futuro melhor à sua família. Essa esperança resume-me na sua tentativa de fazer vender uma sua invenção: um digitalizador de pés. Mas a sua angústia descontrola-se quando este fica preso no seu carro, ficando impossibilitado de fazer vender o seu peixe. É esta premissa que, apesar de simples, comporta, nos pequenos pormenores, um potencial simbólico bastante forte. Aqui, devemos atender à crítica que está a ser feita à sobreposição da tecnologia nas nossas vidas e de como esta acabará por consumir-nos ao ponto de nos deixar imobilizados.
O segundo ponto que deve ser referido é a sua carga simbólica e moralista. Mas devemos primeiro ter a atenção à mutação feita ao conto original de
Saramago. No conto de
Saramago, a angústia e o desespero do nosso “herói” são levados ao extremo, procurado explorar os perigos da modernização, que leva, no filme, a uma situação pré-anarquia, bem como os perigos da ganância. É explorado o lado mais negro desse desejo, mostrando, no seu desfecho final, o horror de um vida presa àquilo que criámos, a tecnologia, e de como acabamos por perder o controlo sobre essa mesma criação. Nesta adaptação cinematográfica,
Tiago Sousa, o argumentista, adoça o desfecho mudando a carga emotiva que até então a audiência tinha experienciado. É alterada a desgraça para uma esperança no futuro e na própria vida relacional, romanceando um pouco a moral da história. No fim, já não é negatividade da industrialização e do desastre social que esta pode causar que é apontada, mas sim a esperança que existe se nos despergarmos dessa negatividade. É dado privilégio às relações humanas, à família e aos pequenos pormenores vivenciais.
Finalmente, e ultrapassada a carga moralista, simbólica e emotiva do filme, falemos um pouco da estética desta película e o que traz de novo à nossa cultura cinematográfica. A nível estético, o que encontramos em
Embargo é uma realização bastante contemplativa. Desde à recorrência aos
planos pormenor até ao jogo de lentas
panorâmicas à volta do carro de
Nuno, tudo vale para puxar a audiência para dentro do filme de forma bastante profunda. Neste caso, a magnífica banda sonora faz um papel fulcral. O envolvimento de cada plano em cada cena e cada cena em cada sequência, adquire a sua perfeição principalmente pela magistral banda sonora que vai muito de encontro ao espírito do filme. É também de salientar, a mestria em termos de fotografia, usando um padrão de tons sepia que vão de encontro à contextualização histórica da época (anos 70/80). No conjunto, cada imagem do filme que recebemos na retina é uma contemplação pura de cada acção, o que acrescenta um toque pessoal na maneira de fazer cinema. Existe aqui, uma corrente que se tenta insurgir, algo novo no panorama cinematográfico português.
Depois de toda esta desconstrução,
Embargo resume-se bem no seu teor humorístico, meio sarcástico, com que acaba por moralizar e até fazer pensar. O humor negro por excelência surge encrostado em quase todo filme, nos diálogos, nas acções e na própria narrativa como um todo. É esse humor que faz corroborar a película
Embargo com o estilo literário de
Saramago. A crítica satírica, o sarcasmo como forma de ataque. É esse o ”sangue” que corre em todas, ou quase todas, as cenas do filme, de forma directa ou indirecta.
António Ferreira precisou de 8 anos para criar uma nova obra, depois de
Esquece Tudo o que te Disse. Pessoalmente, dou graças a esses 8 anos de espera, pois é claro que a maturação e o encontro com o artista interior, que vemos em
Embargo e pouco ou nada vemos em
Esquece Tudo o que te Disse, necessitaram desse período de crescimento.
Um filme que me apaixonou do início ao fim e que me deixou até desleixado nas palavras para o classificar.
Para quem gosta de cinema português. Para quem gosta de cinema. Para quem quem gosta de Arte.